quarta-feira, 30 de janeiro de 2008

Por que ser tomista?

Lumen Veritatis Nº 01 Outubro – Dezembro 2007

João Scognamiglio Clá Dias[1]

O homem tem sede de perpetuar sua lembrança

 “Eterna é a fidelidade do Senhor” (Sl 116, 2).

Um dos sintomas pelos quais podemos discernir o quanto Deus cria a alma humana com vistas à vida eterna é a inextinguível sede de eternidade que brota de seu mais profundo âmago. E isso acontece apesar de o homem constatar até que ponto é efêmera sua existência terrena, tal qual diz o Eclesiástico: “A duração da vida humana é quando muito de cem anos. No dia da eternidade esses breves anos serão contados como uma gota de água do mar, como um grão de areia” (Eclo 18, 8).

Entretanto, arde no homem o desejo de prolongar estavelmente sua lembrança junto aos que com ele vivem, como também entre aqueles que no futuro haverão de existir. A angústia muitas vezes pervade o espírito de quem se coloca na perspectiva de vir a ser inteiramente esquecido pelos seus e pela posteridade. A simples consideração deste versículo do Eclesiastes: “Não há memória do que é antigo, e nossos descendentes não deixarão memória junto àqueles que virão depois deles” (1, 11), quase sempre deita uma certa amargura no fundo da alma de quem experimenta a progressiva cercania da morte.

A febricitada busca de sucesso traz mais frustração do que felicidade

Esse é o pânico psíquico que esteve na raiz da febricitada busca de sucesso da parte de tantos infelizes. Eles mais encontraram frustração do que felicidade, e o que é pior, ad perpetuam rei memoriam. Mais ainda, essa memória pela qual ansiavam fixou-se nas esteiras da História bem no extremo oposto à glória divina que desejavam. Os tempos que nos precederam estão coalhados de ilustrações dessa triste situação. Algumas, porém, se tornaram paradigmáticas como é, por exemplo, o caso de Alexandre Magno (356 a.C. – 323 a.C.).


Depois de se ter apoderado da Grécia, Alexandre, filho de Filipe da Macedônia, oriundo da terra de Kitim, derrotou também Dario, rei da Pérsia e da Média, e reinou em seu lugar. Empreendeu inúmeras guerras, apoderou-se de muitas cidades e matou vários reis da terra. Atravessou-a até aos seus confins, apoderou-se das riquezas de vários povos, e a terra rendeu-se-lhe. Tornou-se orgulhoso e o seu coração ensoberbeceu-se. Reuniu poderosos exércitos, submeteu ao seu império muitos povos e os reis pagaram-lhe tributo.

Finalmente, adoeceu e viu que a morte se aproximava. Convocou então os seus oficiais, os nobres da sua corte, que com ele tinham sido criados desde a sua juventude, e, ainda em vida, dividiu o império entre eles. Alexandre reinou doze anos, e morreu. Os seus generais assumiram o poder, cada um na sua região. Depois da sua morte, cingiram o diadema e, depois deles, os seus filhos, durante muitos anos, multiplicando os males sobre a terra” (1 Mc 1, 1-10).

Conta-nos ainda a História[2], que Alexandre chegou a exigir de seus súditos um culto de idolatria, considerando-se deus. Mas, de que lhe valeram a sucessão de magníficas vitórias, a fundação do Império Grego e o ter-se tornado o dominador absoluto do Oriente Próximo? Em realidade, seu orgulho teve um fim prematuro, vindo a falecer aos trinta e três anos de idade. Seu desaparecimento teve trágicas conseqüências: após longas e sangrentas lutas pela sucessão, seu império fora desmembrado e, com o passar do tempo, absorvido pela expansão romana. Seu legado moral – a civilização helenística – é considerado como deletério pelo livro dos Macabeus. Nele se nos apresenta Antíoco Epífanes – sucessor da dinastia dos selêucidas – como “aquela raiz de pecado” (1 Mc 1, 10) nascida, em última análise, do influxo expansionista de Alexandre Magno[3].

São Tomás de Aquino: o homem que marcou a posteridade com sua doutrina

Quanto erraram este e tantos outros homens! Pois o caminho para perpetuar a memória é bem outro, tal qual afirma o Salmista: “Eterna será a memória do justo” (Sl 111, 6), ou o próprio Livro da Sabedoria: “Mais vale uma vida sem filhos, mas rica de virtudes: sua memória será imortal, porque será conhecida de Deus e dos homens” (Sb 4, 1). Ainda mais nimbada de glória será a imortalidade de sua memória se de seus lábios ou de sua pluma brotarem sábias e elevadas explicitações segundo os recursos da razão humana, sobre as últimas causas, o mundo, o homem e a própria existência de Deus, como também de Seus atributos. E se esse esforço não se apoiar exclusivamente na inteligência, mas, de maneira especial, nas luzes que nos proporciona a Revelação, o fulgor daí resultante será maior.

Um indiscutível exemplo de quem, nessa linha, marcou os acontecimentos da Igreja e foi aureolado da melhor fama é São Tomás de Aquino. Por um rico sopro do Espírito Santo, soube ele conjugar as verdades filosóficas e teológicas enquanto procedentes da Verdade Criadora e Inteligência Suprema. E isto porque a Filosofia é a mais importante das ciências para servir à Teologia, sendo esta a primeira entre todas elas. Uma estuda a ordem da natureza e a outra, a ordem da graça. Ambas muito harmônicas, pois, delas, um só é o criador: Deus! Ele é o autor da verdade natural, como também da revelada, e daí haver um necessário e perfeito entrelaçamento entre razão e fé.

No coração do Doutor Angélico, a lógica adquire asas sem perder seu contato com a terra, e as ciências físicas, metafísicas e filosóficas com toda humildade, inclinam-se diante da autoridade divina para servir à Teologia. Em sua mente encontramos um alcandorado resumo de toda a ciência da Idade Média, como até mesmo da do mundo antigo, purificada e santificada; ali estavam a Filosofia e a Teologia conduzidas a uma perfeita união, a razão submetida à fé em novo vigor e energia. Por isso não devemos considerar suas obras como simples ensaios de Teologia ou de Filosofia, mas sim um verdadeiro monumento-síntese de enorme envergadura e profundidade, esplendor de uma grande época. Daí tornar-se compreensível ainda hoje o motivo pelo qual se deve buscar em São Tomás uma das mais belas aplicações do método, ou melhor ainda dizendo, a lógica em toda a força de sua clareza e penetração, e nunca com os entraves com que a arrouparam nos séculos posteriores.

Quer na alma dos santos, quer na voz do Magistério da Igreja, sempre houve um reconhecimento do gênio divino com o qual o Doutor Angélico elaborou sua Suma Teológica, discernindo e desenvolvendo todos os ramos do conhecimento humano, agrupando-os, entrelaçando-os e entregando-os ao serviço da fé. É nessa perspectiva que encontramos Santo Alberto Magno abismado diante da Suma Teológica produzida por seu ex-aluno, quando com muito esforço procurava ele fazer avançar a sua própria, que há certo tempo começara.


Quando Alberto leu a Suma de seu antigo aluno, exclamou maravilhado: “Isto é perfeito e definitivo!” E se absteve de continuar a sua. O Concílio de Trento confirmou seu parecer: sobre a mesa da sala, colocou ao lado da Bíblia a Suma de São Tomás, como Testamento da Idade Média[4].

O brilho da fulgurante aura de São Tomás não ficou circunscrito à Idade Média; ainda hoje suas luzes nos assistem com seus raios. Na carta Lumen Ecclesiae, do Servo de Deus Paulo VI, dirigida ao Superior Geral dos Dominicanos por ocasião do VII centenário da morte do grande doutor da Igreja, encontramos este importante elogio:


Também o Concílio Vaticano II recomendou, duas vezes, São Tomás às escolas católicas. Com efeito, ao tratar da formação sacerdotal, afirmou: “Para explicar da forma mais completa possível os mistérios da salvação, aprendam os alunos a aprofundar-se neles e a descobrir sua conexão, por meio da especulação, sob o magistério de São Tomás”. O mesmo Concílio Ecumênico, na Declaração sobre a Educação Cristã, exorta as escolas de nível superior a procurar que, “estudando com esmero as novas investigações do progresso contemporâneo, se perceba mais profundamente como a fé e a razão têm a mesma verdade”; e logo em seguida afirma que para esse fim é necessário seguir os passos dos doutores da Igreja, sobretudo de São Tomás. É a primeira vez que um Concílio Ecumênico recomenda um teólogo, e este é São Tomás. Quanto a nós, basta, entre outras coisas, repetir as palavras que pronunciamos noutra ocasião: “Aqueles que têm a missão de ensinar [...] escutem com reverência a voz dos doutores da Igreja, entre os quais ocupa lugar eminente São Tomás; com efeito, é tão poderoso o talento do Doutor Angélico, tão sincero seu amor à verdade e tamanha sua sabedoria ao investigar as mais elevadas verdades, ao explicá-las e relacioná-las com profunda coerência, que sua doutrina é um eficacíssimo instrumento, não só para estabelecer bem os fundamentos da fé, mas também para retirar dela, de modo útil e seguro, frutos de um sadio progresso”[5].

No novo Código de Direito Canônico – uma das obras de grande envergadura do pontificado do Servo de Deus João Paulo II –, a doutrina teológica de Tomás de Aquino se torna, por assim dizer, “lei” da Igreja. Ao tratar da formação dos clérigos, o Código recomenda:


Cân. 252 § 3. - Haja aulas de Teologia dogmática, fundamentada sempre na palavra de Deus escrita, junto com a sagrada Tradição, pelas quais os alunos aprendam a penetrar de maneira mais profunda os mistérios da salvação, tendo por mestre principalmente São Tomás[6].

É particularmente significativo o empenho de João Paulo II em ressaltar a atualidade da doutrina tomista. Matéria na qual esse Papa de feliz e saudosa memória tem uma especial autoridade, não só em decorrência de sua formação no “Angelicum” de Roma, como também por ter vivido intensamente os problemas e as contradições do século XX, exercendo sua atividade docente e ministerial num país em que se confrontavam de forma aguda as ideologias que levaram o racionalismo ao extremo do ateísmo, apesar de ali perpetuar-se uma comunidade eclesial pujante e de sólida fé.

Em 13 de setembro de 1980, ao receber os participantes do VIII Congresso Tomista Internacional, por ocasião do centenário da encíclica Aeterni Patris, do seu predecessor Leão XIII, o Papa João Paulo II afirmava:


Os cem anos da encíclica Aeterni Patris não passaram em vão, nem esse célebre Documento do Magistério pontifício perdeu a sua atualidade. A encíclica baseia-se num princípio fundamental, que lhe confere profunda unidade orgânica interior. É o princípio da harmonia entre as verdades da razão e as da fé. Isto é o que tinha sumamente a peito Leão XIII. Tal princípio, sempre a manifestar-se e atual, durante estes cem anos fez notáveis progressos. Basta ter conta na coerência do Magistério da Igreja desde o Papa Leão XIII até Paulo VI e naquilo que maturou no Concílio Vaticano II, especialmente nos documentos Optatam Totius, Gravissimum Educationis e Gaudium et Spes. […]

Graças às diretrizes da Aeterni Patris, de Leão XIII, que com tal documento – que tinha como subtítulo “De philosophia christiana... ad mentem sancti Thomae... in scholis catholicis instaurandis” – manifestava a consciência de terem chegado uma crise, uma ruptura e um conflito ou, pelo menos, um ofuscamento acerca da relação entre a razão e a fé. No interior da cultura do século XIX poderiam-se, de fato, reconhecer duas atitudes extremas: o racionalismo (a razão sem a fé) e o fideísmo (a fé sem a razão). A cultura cristã movia-se entre esses dois extremos, pendendo para uma parte ou para outra. O Concílio Vaticano I tinha já dito a sua palavra a propósito. Era agora o tempo de imprimir novo curso aos estudos no interior da Igreja. Leão XIII aplicou-se, com clarividência, a essa tarefa, representando – e este é o sentido de instaurare – o pensamento perene da Igreja, na límpida e profunda metodologia do Doutor Angélico[7].

Eixo central do pensamento cristão

Salientou também o Servo de Deus João Paulo II, nessa ocasião, o papel de grande destaque que ocupa o Doutor Angélico, tanto nos céus da Filosofia quanto nos da Teologia:


Como afirmava Paulo VI: [...] “São Tomás, por disposição da Divina Providência, atingiu o cume de toda a Teologia e Filosofia ‘escolástica’, como se lhe costuma chamar, e fixou na Igreja o eixo central a cuja volta, então e em seguida, se pôde desenvolver o pensamento cristão em seguro progresso” (Lumen Ecclesiae, 13. 3).

Está nisto a motivação da preferência dada pela Igreja ao método e à doutrina do Doutor Angélico. Longe de preferência exclusiva, trata-se de referência exemplar, que permitiu a Leão XIII declará-lo. “Inter Scholasticos Doctores omnium princeps et magister” (Aeterni Patris, 13). E tal é verdadeiramente São Tomás de Aquino, não só pela sua plenitude, pelo equilíbrio, pela profundidade e pela limpidez do estilo, mas ainda mais pelo vivíssimo sentido de fidelidade à verdade, que podem também dizer-se realismo. Fidelidade à voz das coisas criadas, para construir o edifício da Filosofia; fidelidade à voz da Igreja, para construir o edifício da Teologia[8].

Justo equilíbrio entre fé e razão

 É, porém, na encíclica Fides et Ratio, que o Papa torna mais candente a atualidade do tomismo, propondo-o como justo equilíbrio entre a fé e a razão, “as duas asas do espírito humano”:


Embora sublinhando o caráter sobrenatural da fé, o Doutor Angélico não esqueceu o valor da racionabilidade da mesma; antes, conseguiu penetrar profundamente e especificar o sentido de tal racionabilidade. Efetivamente, a fé é de algum modo “exercitação do pensamento”; a razão do homem não é anulada nem humilhada, quando presta assentimento aos conteúdos de fé; é que estes são alcançados por decisão livre e consciente
. [...]

Precisamente por esse motivo é que São Tomás foi sempre proposto pela Igreja como mestre de pensamento e modelo quanto ao reto modo de fazer Teologia. Neste contexto, apraz-me recordar o que escreveu o meu Predecessor, o Servo de Deus Paulo VI, por ocasião do sétimo centenário da morte do Doutor Angélico: “Sem dúvida, São Tomás possuiu, no máximo grau, a coragem da verdade, a liberdade de espírito quando enfrentava os novos problemas, a honestidade intelectual de quem não admite a contaminação do Cristianismo pela Filosofia profana, mas tampouco defende a rejeição apriorística desta. Por isso, passou à história do pensamento cristão como um pioneiro no novo caminho da Filosofia e da cultura universal. O ponto central e como que a essência da solução que ele deu ao problema novamente posto da contraposição entre razão e fé, com a genialidade do seu intuito profético, foi o da conciliação entre a secularidade do mundo e a radicalidade do Evangelho, evitando, por um lado, aquela tendência antinatural que nega o mundo e seus valores, mas, por outro, sem faltar às exigências supremas e inabaláveis da ordem sobrenatural”[9].

Bento XVI salienta novamente sua atualidade

Cabe-nos ainda recordar uma recente alocução de Sua Santidade Bento XVI, felizmente reinante, sobre o Doutor Angélico, salientando sua atualidade como solução para o inconsistente conflito entre fé e razão:


O calendário litúrgico recorda hoje São Tomás de Aquino, grande doutor da Igreja. Com seu carisma de filósofo e teólogo, ele oferece um válido modelo de harmonia entre razão e fé, dimensões do espírito humano, que se realizam plenamente no encontro e no diálogo recíproco. Segundo o pensamento de São Tomás, a razão humana, por assim dizer, "respira": isto é, move-se num horizonte amplo, aberto, no qual pode expressar o melhor de si. Ao contrário, quando o homem se limita a pensar só em objetos materiais e experimentáveis e se fecha às grandes interrogações sobre a vida, sobre si mesmo e sobre Deus, empobrece-se. A relação entre fé e razão constitui um desafio sério para a cultura atualmente dominante no mundo ocidental e, precisamente por isso, o amado João Paulo II quis dedicar-lhe uma Encíclica, intitulada Fides et ratio, “Fé e razão”. [...]

Quando é autêntica, a fé cristã não mortifica a liberdade e a razão humana; e então, por que fé e razão devem ter receio uma da outra, se ao encontrar-se e dialogando podem expressar-se do melhor modo? A fé supõe a razão e aperfeiçoa-a, e a razão, iluminada pela fé, encontra a força para se elevar ao conhecimento de Deus e das realidades espirituais. A razão humana nada perde abrindo-se aos conteúdos de fé, aliás, eles exigem a sua adesão livre e consciente[10].

Outros elogios de Papas e catedráticos

Ainda sobre a consagração histórica e universal de São Tomás enquanto filósofo e teólogo, valeria a pena lembrarmos o fato de o Papa João XXII haver afirmado que se aprende mais durante um ano de estudos dedicado às suas obras, em comparação a décadas consagradas ao aprofundamento nos escritos de outros autores[11].

É indispensável, ademais, reconhecer os méritos do Papa Leão XIII em ressaltar os valores científicos das explicitações de São Tomás. Foi por uma ação direta sua – no século XIX, portanto – que surgiram centros de estudos tomistas nas universidades católicas, propiciando, dessa forma, a influência do Doutor Angélico nas descobertas e investigações da ciência. A Biologia, a Química e a própria Psicologia experimental em suas novas conquistas enriqueceram-se, assim, com a seiva doutrinária antiga. Importantes universidades modernas do continente europeu, como também do americano, passaram a se abeberar nos grandes princípios tomistas; por exemplo, Harvard, Oxford, Sorbone e Louvain. Não foi sem razão que Etiènne Gilson, conceituado catedrático da Sorbone, conferiu a São Tomás o título de Pai da Filosofia Moderna. Levou em conta esse mestre o quanto a metafísica de São Tomás constitui a sustentação unificadora da cultura greco-romana batizada e alimentada pelo Cristianismo.

Uma nota essencial do pensamento tomista: Deus é a verdade absoluta

Uma das notas características e até essenciais na elaboração do pensamento de São Tomás está na sua convicção sobre a unicidade da verdade, pois Deus é a Verdade Absoluta e todas as outras que existem esparsas pelo universo são decorrentes da primeira e essencial, tal qual magistralmente esclarece em uma das cinco vias por ele elaboradas para demonstrar a existência de Deus. Por essa razão, não tem o Doutor Angélico o menor receio de servir-se da obra de Aristóteles, filtrada das explicitações inconsistentes dos comentaristas árabes, nem sequer deixa de se aproveitar das doutrinas de Platão para dar ao seu monumental edifício filosófico toda solidez. Evidentemente, teve primordial importância para São Tomás o pensamento elaborado por mestres da própria Igreja, como por exemplo, e sobretudo, Santo Agostinho.[12]

Oferecer um contributo ao pensamento moderno por meio de uma clave antiga e nova

Dado o exíguo espaço de um artigo, não pretendemos aqui comentar as numerosas obras densas em substância doutrinária desse gênio hors série da Verdadeira Igreja. Nem sequer em nada nos pervade a pretensão de nos supormos possuidores dos conhecimentos que nos tornariam capazes de apontar todos os méritos da elaboração de nosso Santo Doutor. Queremos apenas abrir um pouco nossos corações e manifestar o porquê de a Faculdade Arautos do Evangelho, assim como o Instituto Teológico São Tomás de Aquino e o Instituto Filosófico Aristotélico-Tomista, terem tomado por bem promover o estudo da Filosofia e Teologia medievais – destacando de forma especial a doutrina tomista.

Com efeito, os homens e as mulheres de nosso tempo, cansados de procurar a verdade em sistemas de pensamento extremamente contrapostos e diversos, estão sedentos de beber de uma fonte límpida e clara, de haurir a certeza numa escola de pensamento de inspiração cristã, a qual ofereça um sistema não-sujeito às limitações que o divórcio entre a realidade natural e a sobrenatural impõe à inteligência e à vontade humanas.

Pois bem, longe de qualquer anacronismo, o estudo e a pesquisa das fontes tomistas contribuem com uma resposta convincente e profunda àqueles que procuram o alcandor e o esplendor da verdade. Convidamos nosso leitores a usar esse meio de estudo e reflexão com o mesmo espírito que animava o Aquinate a se lançar à busca da sabedoria, tendo bem presente que a vida intelectual de nosso santo Doutor esteve profundamente animada pelo desejo de encontrar ao Deus vivo e verdadeiro e de amá-lo tanto quanto fosse possível a uma criatura. Nunca separou a via da especulação intelectual do caminho da perfeição evangélica, trilhado por ele com admirável zelo. A esse propósito comenta Pio XI:


Como a verdadeira ciência e a piedade, que de todas as virtudes é companheira, estão entre si admiravelmente unidas; e sendo Deus a própria verdade e bondade, não bastaria, é claro, para obter a glória de Deus e a salvação das almas – objetivo principal e próprio da Igreja – que o ministros sagrados fossem bem instruídos no conhecimento das coisas, mas não fossem também abundantemente revestidos das virtudes necessárias. Ora, essa união da doutrina e da piedade, da erudição e da virtude, da verdade com a caridade, foi verdadeiramente singular no Doutor Angélico, ao qual é atribuído como símbolo o sol, pois enquanto leva às mentes a luz da ciência, acende na vontade a chama da virtude.[13]

A vida do estudioso católico exige alto grau de conaturalidade com o sobrenatural, e isto obtem-se apenas pela prática séria das virtudes, de forma especial a da pureza. E como o balão, que mais se eleva quanto menos peso transporta, assim a alma contemplativa só alcançará os cumes da sabedoria se tiver o domínio sobre suas paixões. Assim nos expõe o mencionado Pontífice o ‘segredo’ da ciência de São Tomás:


Pareceu que Deus, fonte de toda a santidade e sabedoria, quisesse mostrar em Tomás como essas duas coisas se ajudam entre si, do mesmo modo que o exercício da virtude predisponha à contemplação da verdade, e por sua vez a acurada meditação da verdade faça mais puras e perfeitas as próprias virtudes. Pois quem vive de modo íntegro e puro, colocando a virtude como freio às suas paixões, como que livre de um grande impedimento, poderá muito mais facilmente elevar seu espírito às coisas celestes, fixando-se melhor nos profundos mistérios da Divindade, segundo as palavras do próprio Tomás: “primeiro está a vida, depois a doutrina; porque a vida conduz à ciência da verdade”; se o homem aplicar todo o seu estudo em conhecer as coisas que estão acima da natureza, por isso mesmo sentir-se-á muito incentivado a viver a perfeição; uma tal ciência, cuja beleza o entusiasme e a si o atraia, nunca poderá ser árida ou inerte, mas ativa num grau supremo.[14]

“Primeiro está a vida, depois a doutrina”. Que nos quis dizer o santo com essa máxima tão significativa? Tomás foi então antes santo que doutor? Cabe, pois, uma palavra final sobre alguns traços relevantes de sua vida, à luz deles poderá julgar o leitor.

Ensina-nos Santiago na sua epístola que “se alguém necessita de sabedoria, peça-a a Deus – que a todos dá liberalmente, com simplicidade e sem recriminação – e ser-lhe-á dada” (Tg 1, 5). Assim o fez São Tomás.

Seu grande e insuperável Mestre foi o Santíssimo Sacramento, diante do qual passava rezando horas inteiras, dia e noite. Freqüentemente, no momento auge da celebração da Santa Missa, ou seja, na hora da Consagração do pão e do vinho, não só o milagre da transubstanciação se realizava em suas mãos, como também, sua face se transfigurava. Chegou ele a afirmar ter aprendido muito mais junto ao Santíssimo Sacramento do que em todos os seus estudos[15]. Guilherme de Tocco, o seu primeiro e principal biógrafo, insiste em dizer que Tomás adquirira o hábito de rezar demoradamente quando tinha de vencer um obstáculo, de intervir num debate importante, de ensinar qualquer matéria mais árdua. Ele confessava assim encontrar a solução dos problemas que o torturavam. Quanto ao tempo que o comum dos homens costumam dedicar ao descanso, Tomás o reduziu a quase nada para prolongar este “Sacrum Convivium” com Jesus Eucarístico[16]. O Padre Santiago Ramirez (1975), baseando-se no processo de canonização de Santo Tomás em Nápoles, explica na sua biografia sobre o Aquinate que “Ele era o primeiro a se levantar pela noite, e ia prosternar-se diante do Santíssimo Sacramento. E quando tocavam as Matinas, antes que os religiosos formassem fila para ir ao coro, ele voltava sigilosamente para a sua cela para que ninguém notasse”[17].

Vocação de monge mendicante

Alguns acontecimentos marcaram mais especialmente sua não longa vida. Como flor da nobreza lombarda, descendia ele dos normandos de há muitos séculos, dos quais certamente herdara sua avantajada corpulência. Devido estar localizado no feudo de sua família o mosteiro de Monte Cassino, seus pais viram com grandes esperanças a possibilidade de contar com um filho no trono abacial daquele importante bastião beneditino, e por isso facilitaram seu ingresso na mais famosa ordem religiosa da época, apesar de sua infantil idade. Entretanto, seus tenros cinco anos já o impeliam a indagar aos monges, andando pelos claustros e corredores: “Quem é Deus?”[18].

 “O homem propõe, mas Deus dispõe”, diz o ditado. Ao completar catorze anos (1239), devido às dissensões entre Frederico II e o Papa Gregório IX, os pais se viram na contingência de retirá-lo de Monte Cassino e fazê-lo viajar a Nápoles, a fim de estudar na Universidade. Neste período é que entrou em contacto com a Ordem Dominicana na germinação de sua expansão, mas já famosa nos ambientes culturais da época. Ali se revelou sua vocação às vias abertas por São Domingos. Tratava-se de uma ordem mendicante, verdadeiro horror para os padrões mundanos de então, em especial para os anseios de realização familiar de seus pais. Apesar de já ter completado dezenove anos quando ingressou oficialmente nos Dominicanos, sua mãe, Teodora, deu instruções a outros filhos seus, e determinou o seqüestro do jovem Tomás pelos seus próprios irmãos, quando este se deslocava a pé do convento romano de Santa Sabina a Bolonha.

Não durou muito sua prisão na torre de um dos castelos de sua família. Foi alimentado nesse período pelos manjares intelectuais do “Livro das Sentenças”, de Pedro Lombardo e, sobretudo, pelas Sagradas Escrituras, as quais, por sua privilegiada memória[19], numa única leitura fixaram-se para sempre em sua lembrança.

Famoso é também o episódio que teve sua origem no perverso plano elaborado e levado a cabo por seus irmãos que introduziram no castelo uma indecorosa cortesã, no intuito de seduzir o Santo; este, por sua vez, serviu-se de um tição agarrado por uma tenaz para expulsá-la do recinto. Imediatamente após, caiu o jovem num profundo sono, durante o qual viu em sonho um anjo que lhe cingia os rins, com o objetivo de confirmá-lo na virtude da castidade.[20]

Humildade no estudo

Não tardou a reintegrar-se à Ordem Dominicana, logo após ter cessado sua prisão (1245). Partiu para Paris, acompanhando seu superior geral, e em seguida para Colônia, onde foi formado por Santo Alberto Magno, ilustre doutor da universidade na qual iria receber a alcunha de “boi mudo” pelo fato de ser muito calado, evitando o buliço das discussões. Nenhuma vaidade supera a do ambiente intelectualizado.

Entre os alunos, houve um que por conta própria assumiu a tarefa de atualizar o Santo em todas as lições, até o momento em que, não conseguindo entender a matéria que procurava explicar, ouviu de seu “aprendiz” uma tão extraordinária explicitação que se sentiu na obrigação de transmiti-la a Santo Alberto. É deste episódio que nasceu a famosa frase de Santo Alberto: “Vós o chamais ‘boi mudo’, mas eu vos garanto que seus mugidos serão ouvidos no mundo inteiro”.[21]

O apogeu de sua carreira

Sete anos mais tarde (1252), enquanto bacharel, passou a ensinar em Paris com vistas a obter o título de mestre ou doutor. Aproveitando-se das horas vagas, nessa ocasião, escreveu seus comentários ao Livro das Sentenças, como também ao Evangelho de São Mateus e a Isaías. Em 1256, já doutorado, escreveu a Suma contra os Gentios. Ao longo de nove anos (1259 a 1268), entre docência e sermões, acompanhou o Papa em seus deslocamentos pela Itália. Foi ao término desse ano que começou a escrever a Suma Teológica.[22]

Estando de novo em Paris (1269), o próprio rei da França, São Luís IX, nomeou-o seu conselheiro. É dessa época o episódio ocorrido na corte: durante um banquete real, batendo fortemente sobre a mesa, São Tomás exclamou: “Modo conclusum est contra haeresim Manichaeorum[23].

Fenômenos místicos

Conta-se o fato de ter ele ouvido do próprio Nosso Senhor Jesus Cristo, ao concluir um trabalho sobre a realidade ou aparência dos acidentes eucarísticos, esta afirmação: “Bem escreveste sobre o Sacramento de meu Corpo!” Algum tempo depois tornaria ouvir a mesma voz, desta vez saída de um crucifixo: “Escreveste bem sobre Mim, Tomás. Qual prêmio queres?” Ao que o santo teria respondido: “A ninguém, senão a Vós mesmo, Senhor![24] Célebre tornou-se também o fato místico ocorrido no ano de 1273, na cidade de Nápoles: ao celebrar a Santa Missa na festividade de São Nicolau, tomou a resolução de não continuar a redação de sua Suma Teológica. “Chegou o término de meus trabalhos. Tudo o que escrevi não é senão palha em comparação com o que me foi revelado” – disse ele.[25]

Morte exemplar

Dignas são de nota suas palavras após ter recebido o viático:

“Recebo-te, penhor do resgate da minha alma, recebo-te, viático da minha peregrinação. Por amor de ti, estudei, velei, trabalhei; preguei-te e ensinei-te. Nada disse contra ti, mas se o fiz foi sem o saber; não persisto obstinadamente nos meus juízos; se mal falei em relação a este e aos outros sacramentos, deixo tudo à correção da Santa Igreja Romana, em cuja obediência saio agora deste mundo.”[26]

Assim, embevecido na íntima união com Deus, sem nunca ter-se atribuído a si próprio qualquer mérito ou honra vã, e tendo seu espírito submisso ao Magistério Infalível, o santo doutor alcançou a glória do céu. De lá ilumina o firmamento da Igreja com sua ciência filosófica e teológica e serve de exemplo para todos aqueles que se dedicam ao estudo, conforme ensina Leão XIII em sua encíclica Aeterni Patris:


Também nisto sigamos o exemplo do Doutor Angélico, que nunca se pôs a ler e escrever sem antes se ter encomendado a Deus com seus rogos, e confessou candidamente que tudo o que sabia não tinha adquirido tanto com seu estudo e trabalho, senão que o tinha recebido de modo divino. Nesta mesma intenção roguemos todos juntos a Deus com humilde e concorde súplica, a fim de que derrame sobre todos os filhos da Igreja o espírito de ciência e entendimento e lhes abra os sentidos para entender a sabedoria.[27]

À luz dessa tão modelar despretensão de São Tomás, rogamos a Deus por intercessão de Maria Santíssima, “Sedes Sapientiae”, que a Revista Lumen Veritatis possa vir a ser um instrumento para esclarecer os espíritos e acender os corações, sabendo que “toda dádiva boa e todo dom perfeito vêm de cima: descem do Pai das luzes” (Tg 1, 17).

 





[1] O autor é sacerdote, Fundador e Presidente Geral dos Arautos do Evangelho, membro da Sociedade Internacional São Tomás de Aquino (SITA) e fundador desta revista.

[2] Sobre Alexandre Magno, cf. Gran Enciclopedia Rialp, Vol. I, Madrid: Rialp SA, 1971, p. 532-536.

[3] Sobre a conduta moral de Alexandre Magno, tanto na vida privada como na sua atuação pública, a apreciação dos historiadores diverge. Alguns, como Vitor Davis Hanson, que em sua obra The Wars of the Ancient Greeks and their Invention of Western Military Culture compara esse personagem grego a Hitler, o consideram um imperialista, outros pretendem julgá-lo segundo as normas de seu próprio tempo. À luz da doutrina cristã, muito bem poderia aplicar-se àquele tirano a crítica aos desvios dos pagãos feita por São Paulo (Rm 20-32).

[4] WEISS, J. B. Historia Universal, Barcelona, Tip. de la Educación, 1929, Vol. VII, p. 170.

[5] PAULO VI. Lumen Ecclesiae, n. 24. Disponível em: <http://www.vatican.va/holy_father/paul_vi/letters/1974/documents/hf_p-vi_let_19741120_lumen-ecclesiae_sp.html>. Acesso em: 15 jun. 2007.

[6] JUAN PABLO II. Código de Derecho Canónico. Disponível em: <http://www.vatican.va/archive/ESL0020/__PV.HTM>. Acesso em: 10 jun. 2007. Tradução nossa.

[7] JOÃO PAULO II. VIII Congresso Tomista Internacional. Discurso aos participantes. 13 set. 1980. Disponível em: <http://www.vatican.va/holy_father/john_paul_ii/speeches/1980/september/documents/hf_jp-ii_spe_19800913_congresso-tomistico_po.html>. Acesso em: 29 jun. 2007.

[8] Idem.

[9] JOÃO PAULO II. Fides et Ratio, n. 43. Disponível em: <http://www.vatican.va/edocs/POR0064/_INDEX.HTM>. Acesso em: 21 maio 2007.

[10] BENTO XVI. Ângelus. 28 jan. 2007. Disponível em: <http://www.vatican.va/holy_father/benedict_xvi/angelus/2007/documents/hf_ben-xvi_ang_20070128_po.html>. Acesso em: 27 jul. 2007.

[11] Seguem-se as palavras pronunciadas pelo Papa João XXII: “Veneráveis Irmãos, consideramos como uma grande glória para nós e para toda a Igreja inscrever este servo de Deus no catálogo dos santos, com tanto que possamos verificar alguns milagres devidos à sua intervenção. Ele [sozinho] iluminou a Igreja mais que todos os outros doutores, e num só ano aproveita-se mais a leitura de seus escritos, como não se faria estudando durante a vida inteira a doutrina dos outros teólogos”. In: JOYAU, Charles-Anatole, O. P., Saint Thomas d’Aquin, Lyon: Librairie Générale Catholique et Classique, 1895. Tradução nossa.

[12] Cf. WEISHEIPL. James A. Tomás de Aquino. Vida, obras y doctrina. Pamplona: Universidad de Navarra S.A., 1994.

[13] PIO XI, Encíclica Studiorum Ducem, 29 de junho de 1923. Disponível em: http://www.vatican.va/holy_father/pius_xi/encyclicals/documents/hf_p-xi_enc_19230629_studiorum-ducem_it.html. Acesso em: 23 maio 2007.

[14] Idem.

[15] “Sua alma entrava num comércio íntimo com Deus. Seu corpo se tornava imóvel, suas lágrimas corriam em abundância, e diversas vezes o vimos elevado da terra vários cúbitos. Era o momento no qual São Tomás adquiria os mais altos conhecimentos, encontrava infalivelmente a solução de suas dificuldades, a compreensão dos textos da Escritura, e as decisões teológicas das quais tinha necessidade. Ele mesmo confidenciou a Frei Reginaldo, seu confessor, ter aprendido mais através de suas meditações, na igreja, diante do Santíssimo Sacramento, ou em sua cela aos pés do Crucifixo, que em todos os livros por ele consultados.” JOYAU, Charles-Anatole, O. P., Saint Thomas d'Aquin, Lyon: Librairie Générale Catholique et Classique, 1895. Tradução nossa.

[16] Cf. AMEAL, João. São Tomás de Aquino. Iniciação ao estudo da sua figura e da sua obra. 3ª ed. Porto: Tavares Martins, 1947, p. 131.

[17] RAMÍREZ, S.: Introducción a Tomás de Aquino, Madrid, BAC. 1975­, p. 83-84­.

[18] CHESTERTON. G. K. Santo Tomás de Aquino: biografia. Tradução e notas de Carlos Ancele Nougué. São Paulo: LTr, 2003.

[19]De fácil e penetrante engenho, de memória fácil e tenaz..., amante unicamente da verdade. Assim designa Leão XIII a São Tomás. Aqueles que o conheceram pessoalmente foram mais explícitos. Sua inteligência era rápida, profunda, equilibrada; prodigiosa sua memória; insaciável sua curiosidade, e sua laboriosidade não conhecia descanso. Compreendia com facilidade quanto lia ou ouvia, e o retinha fielmente em sua memória como no melhor fichário.” In: RODRIGUES, Vitorino. Temas-clave de humanismo cristiano. Speiro. Madrid, 1984, p. 321.

[20] Cf. JOYAU, Charles-Anatole, O. P., Saint Thomas d’Aquin, Lyon: Librairie Générale Catholique et Classique, 1895, p. 77.

[21] Cf. AMEAL, João. Ibidem, p. 56.

[22] Cf. GRABMANN, Martinho. Introdução à Suma Teológica de Santo Tomás de Aquino. Vozes, Petrópolis, 1944, p. 17.

[23] “Agora, está liquidada a heresia dos maniqueus” (Tocco, Vita S. Thomae, cap. XLIV). In AMEAL, João. Ibidem, p. 133.

[24] Cf. NICOLAS, Marie-Joseph. Introdução à Suma Teológica. 2 ed. São Paulo: Loyola, 2003.

[25] Cf. AMEAL, João. Ibidem, p. 145.

[26] Idem, ibidem, p. 154.

[27] LEÓN XIII, Encíclica Aeterni Patris, 4 de agosto de 1879. Disponível em: http://www.vatican.va/holy_father/leo_xiii/encyclicals/documents/hf_l-xiii_enc_04081879_aeterni-patris_sp.html. Acesso em: 23 maio 2007. Tradução nossa.

Lumen Veritatis

Lumen Veritatis Nº 02 Janeiro – Março 2008

João Scognamiglio Clá Dias[1]

Resumo

O presente artigo, ao glosar alguns versículos do prólogo do Evangelho de São João, apresenta Cristo enquanto luz, vida e verdade, que se revela aos homens submersos nas trevas da ignorância e do pecado, e através dessa revelação, eleva-os à contemplação dos misteriosos e infinitos horizontes sobrenaturais da fé. Daí tornar-se patente o quanto é apropriado o título “Luz da verdade” para uma revista acadêmica cujo objetivo principal é ser o eco da mensagem da salvação, um reflexo da “Lux Vera” (Jo 1, 9).

Abstract

This article, elucidating certain verses of the prologue of the Gospel of St. John, presents Christ as light, life and truth, who reveals himself to men submerged in the darkness of ignorance and of sin, and through this revelation, elevates them to the contemplation of the mysterious and infinite supernatural horizons of faith. It thus becomes apparent how the title “Light of Truth” is appropriate for an academic magazine whose principal objective is to be the echo of the message of salvation; a reflection of the “Lux Vera” (John 1:9).

“Clarão da glória do Pai ó Luz, que a Luz origina, sois Luz da Luz, fonte viva, sois Luz que ao dia ilumina” (Ofício Divino – Hino de Laudes)

1 – Introdução

1.1 – A criação da luz

Ao narrar a obra dos seis dias, o Gênesis trata de duas criações de luz, uma no primeiro, outra no quarto dia. Numa primeira leitura, fica-se perplexo diante dessa repetição e, às vezes, chega-se até a imaginar a existência de algum lapso da parte do escritor sagrado. Entretanto, São Tomás trata com sabedoria sobre o aparente equívoco dessa passagem da Escritura, e com base na opinião de Santo Agostinho, interpreta a primeira das luzes criadas como significação do universo angélico surgido da onipotente ação de Deus, na aurora de sua ação ad extra: “Portanto, a formação da natureza espiritual é significada na criação da luz, para que se entenda que se trata da luz espiritual. A formação, pois, da natureza espiritual está em ser iluminada para aderir ao Verbo de Deus”[2]. A outra luz, constituída pelo sol, pela lua e pelas estrelas com a finalidade de iluminar a terra, foi adequadamente criada no quarto dia, pois “a luz mencionada no primeiro dia era espiritual, agora é feita a luz corporal”[3].

1.2 – O início do Evangelho de São João

Porém, não é a respeito dessas luzes que São João trata na introdução de seu Evangelho. Para nos mostrar a substância e beleza de uma outra luz, infinitamente superior, ele ultrapassa os estreitos limites do tempo e recua aos infinitos horizontes da eternidade. “Enquanto os demais Evangelistas começam pela Encarnação, São João, indo além da Concepção, da Natividade, da educação e do desenvolvimento de Jesus, fala-nos de sua eterna geração, dizendo: ‘No princípio era o Verbo’”[4]. Esse princípio diz respeito ao ab æterno das Pessoas da Santíssima Trindade e do próprio Deus.

São João, com plena segurança teológica, não tem receio de afirmar que “Tudo quanto foi feito, nEle era vida...” (Jo 1, 4) para a seguir fazer um elo entre essa “vida” com a “luz que brilha nas trevas” (Jo 1, 5) que essencialmente é o objeto de nossa atenção.

2 – O versículo 4 do primeiro capítulo do Evangelho de São João

2.1 – “Tudo quanto foi feito, nEle era vida”

Ainda segundo São Beda, ao afirmar São João que toda obra da Criação era vida no Verbo, antes de seu vir a ser, foi movido pela preocupação de evitar em seus leitores a idéia de mutabilidade da vontade divina, que constituiria um grave erro (p. 11). São Tomás de Aquino nos torna ainda mais clara a compreensão desse versículo quando afirma poderem as coisas ser analisadas debaixo de dois prismas diferentes, ou seja, em si mesmas ou em função do que são no Verbo. Focalizadas em si mesmas, nem todas as coisas têm vida, umas sim, outras não. Porém, vistas as coisas como são no Verbo “não só são viventes, senão também a vida”. E não recusa o Doutor Angélico em nos dar o exemplo de um objeto construído por um artífice. Tratando-se de matéria, evidentemente não tem vida e menos ainda, é vida mas a idéia do objeto, até certo ponto, vive na imaginação do artífice. Porém, como o “entender do artífice não é sua essência nem seu ser”, não se pode afirmar que esse objeto é vida. Ora, as criaturas na mente divina, muito ao contrário do que nos homens e nos próprios anjos, são vida porque, “em Deus, seu entender é sua vida e sua essência. E por isso, qualquer coisa que existe em Deus, não só vive senão é a própria vida, pois qualquer coisa que existe em Deus é sua essência.”[5]

Também Orígenes teve empenho em tornar explícito o versículo em questão, citando alguns dos múltiplos exemplos espalhados pelo universo criado: o sol, as sementes, a alma do artista etc., enquanto causas nas quais vivem os efeitos que produzem: “e assim examinemos os vários exemplos naturais, dos quais, como em asas de teoria física, podemos elevar-nos com os olhos da alma até os arcanos do Verbo e, na medida em que é permitido à inteligência humana conhecer como todas as coisas feitas pelo Verbo vivem e foram feitas nEle”[6].

2.2 – “E a vida era a luz dos homens”

“Eu vim para que tenhais vida, e para que a tenhais em abundância” (Jo 10,10), diz Jesus no Evangelho. E de fato Ele Se fez homem como nós para desta forma, além de ser nosso caminho e verdade, também fosse nossa vida, e por isso exclama Santa Teresa: “¡Oh, Vida que la dais a todos! No me neguéis a mí esta água dulcísima que prometéis a los que la quieren” (Obras Completas, Vol. II, p. 646-647, BAC, Madrid, 1954).

A inter-relação entre vida e luz, essa reversibilidade recíproca na conceituação de São João faz crer em alguma revelação do próprio Divino Mestre ou quiçá, de Sua Santíssima Mãe recebida por ele em algum momento. É ela muito feliz e ao mesmo tempo feita em tom categórico apesar de ser suave em sua forma, nesta segunda parte do versículo 4: “e a vida era a luz dos homens”. Um bom número de comentaristas procura aprofundar seu significado, dentre eles se destaca, de maneira especial por sua clareza, Orígenes:


A vida é o mesmo que a luz. Ele é a luz dos homens, e assim Ele é a vida dos homens, dos quais é luz. E deste modo quando se diz vida, pode dizer-se o Salvador, vida, não de Si mesmo, mas de outros, dos quais é também luz. Essa vida existe no Verbo de Deus de uma maneira inseparável, e existe juntamente desde que foi feita por Ele.

Convém, pois, que a razão ou o verbo preexista na alma para purificá-la, a fim de que, uma vez limpa de seus pecados, apareça pura, e se introduza assim, e se engendre a vida naquele que se que fez susceptível do Verbo de Deus. Não se diz que o Verbo foi feito no princípio, porque não existia o princípio sem o Verbo de Deus; a vida dos homens, porém, não estava sempre no Verbo, mas essa vida dos homens foi feita, porque a vida é a luz dos homens: quando o homem não existia, também não existia a luz dos homens que depois eles haveriam de poder ver; e, portanto, diz: “O que foi feito no Verbo era vida”; e não “o que estava no Verbo era vida”. Há outra variante aceitável, a qual diz: “O que foi feito nEle é vida”. Se entendemos, pois, que a vida dos homens, que está no Verbo, é Aquele de quem São João diz: “Eu sou a vida” (Jo 14, 6), devemos confessar que não vive nenhum dos infiéis de Cristo, mas que estão mortos todos os que não vivem em Deus[7].

2.3 – O Verbo é a luz intelectual que ilumina a alma dos seres racionais

Evidentemente, São João não se refere nesta passagem, à vida humana natural, mas àquela que levou o Apóstolo a exclamar: “Já não sou eu que vivo, é Cristo que vive em mim” (Gal 2, 20). Ouçamos a esse propósito a opinião de Teófilo:


Tinha dito que “nEle estava a vida”, para que não se acredite que o Verbo estava separado dela. Agora declara que é a vida espiritual e a luz de todos os seres racionais. Por isto acrescenta: “E a vida era a luz dos homens”. Como dizendo: “Esta luz não é sensível, mas intelectual, e ilumina a própria alma”[8].

Essa é a razão pela qual são iluminados os homens e não os seres animados ou inanimados inferiores, pois é necessária a existência da alma racional a fim de penetrar-se no universo da sabedoria.

Por outro lado, nessa afirmação de que “a vida era a luz dos homens” deve-se considerar a vida em sua forma mais nobre, que é a das criaturas espirituais, capazes de conhecimento natural e sobrenatural. Para elas, viver é conhecer, pela razão na ordem natural e pela fé na ordem sobrenatural: “Esta é a vida eterna, que te conheçam a ti, único Deus verdadeiro, e a teu enviado, Jesus Cristo” (Jo 17, 3).

2.4 – O Verbo enquanto revelador universal de todo conhecimento

Tomando por base São Justino, o Pe. Braun desenvolve em seus comentários às Sagradas Escrituras um interessante corolário desse versículo de São João:


Desta vida é o Verbo a fonte sempre fecunda, visto que a possui em si mesmo: “nEle estava a vida”, não como simples depósito recebido de outra parte, senão como está em Deus: ‘Assim como o Pai tem a vida em si mesmo, assim também deu ao Filho ter a vida em si mesmo’ (Jo 5, 26). Dito de outra forma: Ele ‘é a vida’ (Jo 11, 25; 14, 6), como também ‘a luz’ (Jo 8, 12; 12, 46).

Dado que para um homem viver uma vida verdadeiramente digna deste nome é conhecer, o Verbo vivifica aos homens iluminando-os e fazendo-os descobrir as verdades saudáveis. Seu operar não se fez só depois de sua encarnação — a ela não chegamos ainda — senão inclusive antes dela, em todo tempo, desde que o homem existe, sem distinção de raças nem de nacionalidade. São Justino insistiu muito nesta idéia do Verbo revelador universal. Como é sabido, explica pela ação do Verbo as felizes descobertas dos filósofos pagãos[9].

2.5 – A inteligência humana jamais alcançaria os principais mistérios da nossa fé

Se não nos tivesse sido revelada a vida íntima das três Pessoas da Santíssima Trindade, jamais a inteligência humana, e nem mesmo a angélica, teriam atinado com Sua existência. O Deus enquanto uno, criador e eterno, nossa razão ainda alcançaria, mas sem uma comunicação do próprio Deus, jamais chegaríamos a conhecer a geração do Verbo e a procedência do Espírito Santo.

A perfeita didática da Divina Providência conduziu a humanidade por vias firmes e progressivas até a revelação desses principais mistérios de nossa fé:


“Criando pelo Verbo o universo e conservando-o, Deus proporciona aos homens, nas coisas criadas, um permanente testemunho de si e, além disso, no intuito de abrir o caminho de uma salvação superior, manifestou-se a si mesmo, desde os primórdios, a nossos primeiros pais” (Dei Verbum, 3). Convidou-os a uma comunhão íntima consigo mesmo, revestindo-os de uma graça e de uma justiça resplandecentes.

Esta Revelação não foi interrompida pelo pecado de nossos primeiros pais. Deus, com efeito, “após a queda destes, com a prometida redenção, alentou-os a esperar uma salvação e velou permanentemente pelo gênero humano, a fim de dar a vida eterna a todos aqueles que, pela perseverança na prática do bem, procuram a salvação” (Dei Verbum, 3)[10].

Mas, o povo eleito no Antigo Testamento, mais conheceu a Deus como criador e legislador sem penetrar o mistério da vida íntima da Trindade Santíssima. Só mesmo a encarnação do Verbo dissipou as nuvens e permitiu ao homem contemplar maravilhado esse misterioso panorama de dentro do mirante da fé:


Muitas vezes e de diversos modos outrora falou Deus aos nossos pais pelos profetas. Ultimamente nos falou por seu Filho, que constituiu herdeiro universal, pelo qual criou todas as coisas.  Esplendor da glória (de Deus) e imagem do seu ser, sustenta o universo com o poder da sua palavra. Depois de ter realizado a purificação dos pecados, está sentado à direita da Majestade no mais alto dos céus, tão superior aos anjos quanto excede o deles o nome que herdou. Pois a quem dentre os anjos disse Deus alguma vez: Tu és meu Filho; eu hoje te gerei? Ou então: Eu serei seu Pai e ele será meu Filho? (Heb 1, 1-5).

2.6 – Tudo o que possa ser abarcado por nossa fé nos foi concedido pela luz de Cristo

São Tomás de Aquino procura com êxito, explicar-nos o quanto é débil a inteligência humana para chegar ao conhecimento das coisas divinas e que pelo mesmo motivo necessita ser o homem “levado pela mão” para amar a Deus, e para tal servir-se de “algumas coisas sensíveis”. Claro está que o Doutor Angélico coloca entre estas, como sendo a principal, a própria Humanidade de Nosso Senhor Jesus Cristo (cf. Suma Teológica, 2-2, q. 82, a. 3 ad 2). Constituindo esta o pináculo de toda ordem da criação, a partir da Encarnação do Verbo, nada mais tem o homem a indagar a Deus, pois, tudo o que possa ser abarcado por nossa fé foi-nos concedido pela luz de Cristo.  Assim explica São João da Cruz:


Porque em dar-nos, como nos deu, seu Filho, que é sua Palavra única, e outra não tem, tudo nos falou de uma só vez nessa única Palavra, e nada mais tem a falar, [...] pois o que antes falava por partes aos profetas agora nos revelou inteiramente, dando-nos o Tudo que é seu Filho. Portanto, se hoje alguém quisesse interrogar a Deus, pedindo-lhe alguma visão ou revelação, não só faria uma bobagem, mas agravaria a Deus por não dirigir os olhares unicamente para Cristo sem querer outra coisa ou novidade alguma[11].

2.7 – Ao abraçarem o pecado, os homens se fecham à luz procedente do Verbo

Pelo anteriormente exposto, vemos o quanto é densa de significação essa aproximação que São João faz entre vida e luz. Por outro lado, podemos deduzir até que ponto o pólo oposto estaria colocado na morte e trevas, não no sentido de que se possa considerá-las como uma potência incriada e em luta contra Deus como desejariam os maniqueus, ou os gnósticos, por exemplo. Mas de fato inteiramente aplicáveis aos que se blindam em relação à luz, ou seja, à Palavra de Deus, e depois de se lançarem nas trevas, acabam por conferir a morte ao seu espírito.


Se a vida se torna tal só quando se reconhece chamada por Deus e só nesta compreensão — de ser “luz” — é vida, é necessário que tenha também a possibilidade de recusar tal compreensão e tornar-se “trevas”. Trevas em S. João não significa, como no gnosticismo, uma substância eterna e contrária a Deus; mas é um ato histórico, isto é, a revolta que perpassa toda a história do homem contra o apelo da palavra divina e o fechar-se do homem em si mesmo. Por isso a condição do homem fechado em si e que procura manter essa orgulhosa auto-suficiência é caracterizada por João como matar a verdade e ser mentiroso (8, 30-47), buscar a glória (isto é, a luz aparente) dos homens em vez da glória (a verdadeira luz) de Deus (5,44; 7,18; 12,43)[12].

Em contraste com as “trevas”, compreendemos ainda melhor a pulcritude da “luz”, como também o porquê da afirmação de Jesus: “O teu olho é a luz de teu corpo. Se o teu olho for simples, todo o teu corpo será luminoso” (Mt 6, 22). De fato, pode-se assegurar que se teu olho é simples, teu interior será luminoso. Se tua intenção é reta, teu interior estará penetrado de luz. Se teu coração é puro, verá as coisas como realmente são. Assim, ter o interior luminoso significa ver as coisas em sua verdadeira luz, apreciá-las segundo seu justo valor, de dentro do prisma da eternidade e em função de suas relações com o Verbo de Deus.

Ao se perguntar Santo André de Creta, bispo, em seu sermão de Domingo de Ramos:


“Que luz é esta?”, respondeu logo a seguir com toda clareza: “Só pode ser aquela que ilumina a todo homem que vem ao mundo (cf. Jo 1,9). A luz eterna, luz que não conhece o tempo e revelada no tempo, luz manifestada pela carne e oculta por natureza, luz que envolveu os pastores e se fez para os magos guia do caminho. Luz que desde o princípio estava no mundo, por quem foi feito o mundo e o mundo não a conheceu. Luz que veio ao que era seu, e os seus não a receberam”[13].

Aí está esse Deus que “habita uma luz inacessível” (1 Tm 6, 16) na realização de Seu eterno desejo de comunicar Sua própria vida, “a luz dos homens” (Jo 1, 4). E daí se entende o porquê de os homens, quando abraçam o pecado, fecharem os olhos à luz procedente do Verbo, Vida de nossa vida, Luz de nossa inteligência. À salvação, prefere o pecador as desordenadas trevas de suas paixões, de suas más inclinações.


Aquela vida é a luz dos homens, mas os corações insensatos não podem compreendê-la, porque seus pecados não lhes permitem; e para que não suponham que essa luz não existe, pelo fato de que não podem vê-la, prossegue: “A luz resplandeceu nas trevas, e as trevas não a compreenderam”. Por isso, irmãos, assim como o homem cego colocado diante do sol, embora estando em sua presença, se considera como ausente dele, dessa maneira todo insensato, todo iníquo, todo ímpio é cego de coração. Está diante da sabedoria, mas como um cego, seus olhos não a podem enxergar: ela não está longe dele, mas ele é quem está longe dela[14].

3 – O versículo 5 do primeiro capítulo do Evangelho de São João

A essas alturas, passamos a distinguir melhor a profundidade dos termos “luz” e “trevas”, empregados por João no versículo 5 — “E a luz resplandeceu nas trevas, mas as trevas não a compreenderam” —, sobretudo se retornarmos às considerações de Orígenes sobre a introdução do quarto evangelho, nas quais estabelece a equivalência entre os termos “luz” e “vida”; “morte” e “trevas”:


E se a vida é o mesmo que a luz dos homens, ninguém que está nas trevas tem vida, e nenhum dos que vivem está nas trevas; e como todo aquele que vive encontra-se na luz, todo aquele que está na luz vive. [...] Pelo contrário, aquele que faz coisas próprias à luz, ou cujas ações brilham diante dos demais homens, e que se lembra de Deus, esse não está na morte, de acordo com o que diz o Salmo 6: “no seio da morte não há quem de Vós se lembre”[15].

3.1 – Antes da Encarnação o gênero humano estava nas trevas por causa do Pecado Original

A origem das “trevas” que cercam o homem, afirma Orígenes, está na sua natureza ferida pelo pecado dos primeiros pais: “porque todo o gênero humano — não pela natureza, mas por causa do pecado original — estava nas trevas da ignorância da verdade”. E pela luz de Cristo, que “resplandece nos corações daqueles que O conhecem, após ter nascido da Virgem”, o homem é resgatado da escuridão espiritual. Por isso, Orígenes é levado a exclamar com o Apóstolo: “Antes éramos trevas, mas agora somos luz no Senhor, se somos de algum modo santos e espirituais”. E lembra que se saímos das sombras do erro deve-se à Encarnação do Verbo: “A luz dos homens é Nosso Senhor Jesus Cristo, o qual Se deu a conhecer pela natureza humana a toda criatura racional e intelectual, como também manifestou aos corações dos fiéis os mistérios de sua divindade”[16].

Porém, uma vez recebida a luz da verdade e da vida temos de reconhecer nela uma dádiva muito superior à nossa pobre natureza. Orígenes nos coloca nessa perspectiva:


Assim como o ar não brilha por si mesmo, mas se chama trevas, assim nossa natureza, enquanto examinada por si mesma, não é mais do que certa substância tenebrosa, capaz de participar da luz da sabedoria; e assim como não se diz que o ar brilha por si mesmo quando recebe os raios do sol, mas sim que a luz do sol nele resplandece, assim também a parte de nossa natureza racional, enquanto participa da presença do Verbo de Deus, não conhece por si mesma seu Deus nem as coisas compreensíveis, mas pela luz divina que nela se encontra. E desse modo a luz brilha nas trevas porque o Verbo de Deus, vida e luz dos homens, não cessa de resplandecer em nossa natureza (a qual, considerada e estudada em si, não passa de uma obscuridade informe); e como essa mesma luz é incompreensível para toda criatura, as trevas não a compreenderam[17].

3.2 – As trevas nunca vencerão a Luz do Verbo

São Tomás de Aquino, em seu comentário ao prólogo do Evangelho de São João, completa o sentido desse versículo, indicando a ação dos maus como a tentativa frustrada de ofuscar a Luz:


[As trevas] não venceram [a Luz]. Já que por muito que os homens obscurecidos pelos pecados, cegos pela inveja, tenebrosos pela soberba, tenham lutado contra Cristo — censurando, fazendo injúrias e ultrajes, e finalmente matando, como está claro no Evangelho — contudo, não O compreenderam, isto é, não O venceram obscurecendo-O de modo que sua claridade não brilhasse em todo o mundo[18].

Pelo anteriormente exposto, pode-se perceber o quanto é acertada a expressão de São João “et tenebræ eam non comprehenderunt” (Jo 1, 5), pois a força dessa luz é a própria onipotência divina que eleva nossa natureza aos cimos da vida da graça e dissipa o mal deste mundo. A iniqüidade, o erro e o feio não conseguiram — e nem jamais o conseguirão — vencê-la.

As trevas (conjunto das forças do mal) nunca abarcarão a luz do Verbo pois, “lux in tænebris lucet”.

4 – Lumen Veritatis: o título da nossa revista acadêmica

Ademais, é um erro fundamental querer atribuir o caráter absoluto às trevas como o fizeram na Antigüidade certas religiões, considerando, assim, a existência de dois deuses: luz e treva. E se não são as trevas um ser por essência, como podem elas vencer a luz?

Por todo o anterior, estamos mais bem ambientados para entender a Luz que nos revela a verdade dissipando todo erro e confusão.

4.1 – A Luz veio ao mundo e os homens amaram mais as trevas do que a Luz

No último dia da Festa dos Tabernáculos, durante uma longa discussão com os fariseus e em seguida ao episódio com a mulher adúltera apanhada em flagrante, Jesus afirma: “Eu sou a luz do mundo, o que me segue não andará nas trevas, mas terá a luz de vida” (Jo 8, 12). Um dos principais ritos dessa festa propiciou ao Divino Mestre essa afirmação, pois os judeus acendiam uma grande lâmpada no interior do Templo e realizavam uma procissão com tochas em chamas.

É ainda dentro desse contexto que encontramos outro pronunciamento de grande importância: “Se vós permanecerdes na minha palavra [...] conhecereis a verdade e a verdade vos tornará livres” (Jo 8, 31). Porém, os próprios circunstantes ouviram mas não compreenderam, e alguns até se revoltaram.

Mais adiante, novamente Ele diria: “sou a luz do mundo” (Jo 9, 5) e desta vez conferindo maior facilidade para a crença em Sua palavra, ao curar um cego de nascença, o qual num reencontro adquire a luz da verdade, manifestando Sua fé na divindade de Jesus: “Creio, Senhor. E, prostrando-se, O adorou” (Jo 9, 38). Entretanto, apesar de todas as mais robustas comprovações, continuaram as objeções dos que recalcitravam contra a Lux Vera[19].

Ia assim, realizando-se o juízo de Deus:


A condenação está nisto: A luz veio ao mundo, e os homens amaram mais as trevas do que a luz, porque as suas obras eram más. Porque todo aquele que faz o mal, aborrece a luz e não se chega para a luz, a fim de que não sejam reprovadas as suas obras; mas aquele que procede segundo a verdade, chega-se à luz, a fim de que suas obras sejam manifestas como feitas segundo Deus (Jo 3, 19-21).

4.2 – A união com a Luz impõe a íntegra coerência de fé, razão e vontade

Jesus nos trouxe a luz da verdade ao se encarnar no seio virginal de Maria Santíssima, e nos ofereceu uma revelação fundamental: Deus é luz. E é nessa luz que devemos caminhar conforme nos aconselha São João em sua primeira Epístola:


A nova que ouvimos dele e que vos anunciamos é esta: que Deus é luz e não há nele nenhuma treva. Se dissermos que temos sociedade com ele e andamos nas trevas, mentimos e não praticamos a verdade. Porém, se andamos na luz, como ele também está na luz, temos comunhão recíproca, e o sangue de Jesus Cristo, seu Filho, nos purifica de todo o pecado (1 Jo 3, 5-7).

A união com Deus — Luz e Verdade em essência — impõe a necessidade da íntegra coerência de fé, razão e vontade com as exigências de tão alta comunhão.


Com razão se pode pois dizer que João, referindo-se polemicamente à terminologia gnóstica da luz, a desenvolve, porém, na perspectiva do simbolismo vetero-testamentário — a luz é a palavra de Deus — e lhe dá um centro novo no homem histórico Jesus. Ele é a verdadeira luz (Jo 1, 8), isto é, somente nele é dada a verdadeira iluminação da vida humana. Só quem se compreende a partir de Cristo e orientado para Cristo, se compreende retamente e “vive” na verdade. O simbolismo joanino da luz deve ser visto no contexto unitário da interpretação que o quarto Evangelho dá dos grandes símbolos elementares da humanidade – pão, água, vida, luz – aplicando-os a Jesus de Nazaré. Central e típico é o caso da cura do cego de nascença, na qual se reflete claramente todo o drama da história humana; drama a que apenas se alude no prólogo  com poucas e breves palavras (1, 9). Em João, a luz é a verdade que em Cristo se tornou novamente acessível ao homem; as trevas são a falsidade, isto é, a realidade do homem que, antes da vinda de Cristo, vive sempre de um ou de outro modo em oposição à verdade. A imagem da luz é assim radicalmente privada de seu significado natural e ao mesmo tempo levada à sua mais alta expressão[20].

Eis algumas das principais razões do título de nossa revista acadêmica: Lumen Veritatis.

 



[1] O autor é sacerdote, fundador e Presidente Geral dos Arautos do Evangelho, fundador e Superior Geral da Sociedade Clerical de Vida Apostólica Virgo Flos Carmeli e fundador da Sociedade de Vida Apostólica feminina Regina Virginum; membro da Sociedade Internacional São Tomás de Aquino (SITA) e fundador desta revista.

[2] AQUINO, Tomás de. Suma Teológica, vol. II, p. 300. Parte I, q. 67, a. 4. São Paulo: Loyola, 2002.

[3] Idem, vol. II. p. 322. Parte I, q. 70, a. 1.

[4] BEDA, apud AQUINO, Tomás de. Catena Áurea, vol. V, p. 1. Buenos Aires: Cursos de Cultura Católica, 1946.

[5] AQUINO, Tomás de. Sobre el Verbo – Comentário al Prólogo del Evangelio de San Juan. Pamplona: EUNSA, 2005, p. 91

[6] ORÍGENES. Hom. 2 in Dif. Loc. Apud AQUINO, Tomás de. Cátena Áurea, vol. V, p. 12. Buenos Aires: Cursos de Cultura Católica, 1946.

[7] Idem, ibidem, p. 13.

[8] TEÓFILO Apud AQUINO, Tomás de. Cátena Áurea, vol. V, p. 14. Buenos Aires: Cursos de Cultura Católica, 1946.

[9] BRAUN, O.P. La Sainte Bible. Paris: Ed. Pirot-Clamer, 1950, t. 10, p. 313-314. Tradução nossa.

[10] Catecismo da Igreja Católica, p. 208. § 54 e 55. São Paulo: Loyola, 2001.

[11] CRUZ, São João da. Subida do Monte Carmelo. L. 2, c. 22, § 3-5. Apud Vida y obras de San Juan de La Cruz, p. 450. Madrid: BAC, 1964. Tradução nossa.

[12] RATZINGER, Joseph. Dicionário de Teologia, de Heinrich Fries – III vol. – pág. 207 – Edições Loyola – São Paulo – 1987).

[13] Liturgia das Horas, Vol. II, tradução para o Brasil da 2ª edição, 1999, Editoras Vozes, p. 366

[14] AUGUSTINOS, In Evangelium Ioanenis Tractatus Centum Viginti Quatro, § 18-19. Disponível em <htpp://www.sant-agostino.it/latino/comento_vsg/index2.htm>. Acesso em: 24 jun. 2007. Tradução nossa.

[15] ORÍGENES. Hom. 2 in Dif. Loc. Apud AQUINO, Tomás de. Catena Áurea, vol. V, p. 14-15. Buenos Aires: Cursos de Cultura Católica, 1946.

[16] Idem, ibidem.

[17] Idem, ibidem, p. 16.

[18] AQUINO, Tomás de. Sobre el Verbo Comentario al Prólogo del Evangelio de San Juan. Pamplona: EUNSA, 2005. p. 93.

[19] Cf. Jo 1, 9. Comentando essa expressão do prólogo de São João, o Pe. Tuya nos diz: “O Verbo é luz verdadeira. Assim como de Deus se diz que é ‘verdadeiro’ em oposição aos ídolos (Jo 17, 3; 1Jo 5, 20), assim o Verbo é chamado luz ‘verdadeira’ porque nEle se incluem plenamente todas as qualidades, metaforicamente, da luz”. TUYA, Manuel de. Biblia comentada, vol. II, Evangelios. Madrid: BAC, 1964. Tradução nossa.

[20] RATZINGER, Joseph. Ibidem, p. 207 e 208.

O fundador da Revista, Pe. João Scognamiglio Clá Dias

Natural de São Paulo, já nos bancos escolares procurava organizar com seus colegas um movimento para dar aos jovens um sentido moral e virtuoso à existência. Ingressou nas Congregações Marianas e também na Ordem Terceira do Carmo, sendo um ativo líder universitário católico nos anos que precederam a revolução da Sorbonne, de maio de 1968. Cursou Direito na prestigiosa Faculdade do Largo de São Francisco, em São Paulo (sua cidade natal), ao mesmo tempo em que aperfeiçoava seus conhecimentos musicais com o renomado maestro Miguel Arqueróns, regente do Coral Paulistano do Teatro Municipal de São Paulo.Prestou serviço militar na Companhia de Guardas, onde recebeu uma das maiores condecorações brasileiras por sua disciplina e aproveitamento: a “Medalha Marechal Hermes – Aplicação e Estudo”. Realizou arriscadas proezas como pára-quedista, em numerosos saltos.Para os estudos teológicos aprimorou-se com os grandes catedráticos de Salamanca (Espanha), como o Pe. Arturo Alonso Lobo O.P., o Pe. Marcelino Cabreros de Anta C.M.F., o Pe. Victorino Rodríguez y Rodríguez O.P., o Pe. Esteban Gómez O.P., o Pe. Antonio Royo Marín O.P., o Pe. Teófilo Urdánoz O.P. e o Pe. Armando Bandera O.P. Como demonstração de profundo agradecimento aos seus mestres, divulgou anos depois as biografias de vários deles, com edições na Espanha e nos Estados Unidos: “Antonio Royo Marín, mestre de espiritualidade, brilhante pregador e famoso escritor”, “Pe. Cabreros de Anta CMF, firme pilar do Direito Canônico em nosso século”, etc...Preocupando-se sempre com a formação dos jovens, organizou numerosas atividades culturais com clara inspiração católica, e também centros de acolhida. Em 1970 iniciou uma experiência de vida comunitária a fim de melhor se dedicar ao apostolado, em um antigo imóvel beneditino, em São Paulo. O movimento de evangelização se desenvolveu a ponto de ser reconhecido pela Santa Sé em 2001, como uma Associação Internacional de Direito Pontifício, os Arautos do Evangelho, que hoje estende suas atividades a 57 países.Em todos os ambientes nos quais atuou, o Pe. João Clá destacou-se por seu testemunho de fé, sempre vivida e transmitida com alegria. Dotado de admirável oratória, proferiu palestras em vários auditórios da Europa e das Américas, demonstrando habilidade em infundir nos corações o entusiasmo para as verdades da Fé, o ânimo para a prática das virtudes e a certeza da vitória da Santa Igreja Católica na guerra contra o materialismo, o hedonismo e o relativismo dos nossos dias.

Dotado de fino talento musical, fundou mais de 30 coros e bandas sinfônicas – e também uma orquestra – em duas dezenas de países. Dirige o Coro e Orquestra Internacional dos Arautos do Evangelho, que já realizou turnês em vários países da Europa e das Américas, apresentando-se em famosas igrejas e teatros.Seu ardente desejo de evangelizar moveu-o a escrever obras que tiveram grande divulgação, com tiragens de centenas de milhares de cópias (chegando algumas a superar um milhão de exemplares), publicadas em português, espanhol, inglês, italiano, francês, polonês e albanês: “Fátima, aurora do terceiro milênio”, “O Rosário, a oração da paz”, “Sagrado Coração de Jesus, tesouro de bondade e de amor”, “Medalha Milagrosa, história e celestiais promessas”, “Via Sacra”, “Jacinta e Francisco, prediletos de Maria”, “Os Mistérios Luminosos do Rosário”, “Orações para o dia-a-dia” e outras. Três livros devem ser mencionados em especial pelos trabalhos prévios de pesquisa: “Mãe do Bom Conselho”, “Dona Lucília” e “Comentários ao Pequeno Ofício da Imaculada Conceição”.É membro, dentre outras, da Sociedade Internacional Tomás de Aquino e da Academia Marial de Aparecida. Foi condecorado em diversos países por sua atividade cultural e científica, recebendo, por exemplo, a Medalha de Ciências do México. Desde 2002 tem publicado regularmente os comentários ao Evangelho, na revista Arautos do Evangelho, com edições em português, espanhol e italiano.

 

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